quinta-feira, 11 de agosto de 2011

BACH (1685-1750)

         
         Escrever sobre J. S. Bach em tão poucas páginas e depois de tantos eruditos é um desafio deveras desesperador. Tanto mais que não há músico que se preste tão pouco quanto ele aos entretenimentos literários. A tranquila enormidade do seu gênio esafia a análise, embora ele seja, de todos os mestres, aquele que reclama as mais pacientes exegeses. Vou, pois, arriscar-me a despertar aquela fisionomia grave afstando-me, em alguns aspectos, das visões tadicionais. Infelizmente, tentar esses enfoques e esse comércio com uma obra e uma sombra não é abnegar-se a si próprio. Mas, afinal, todo artista nunca teve outro objetivo senão gerar-se na alma do próximo e gerá-lo por conseguinte, nem que apenas durante o desenrolar de uma sonata. Bach, mais do que ninguém, é um músico da meditação, o que o distingue muitíssimo. Reconhecendo-se dotado pelo próprio Deus e sendo-lhe devedor por isso, ele não pensou em outra coisa além de servir a seus contemporâneos e ilustrar, o mais perfeitamente possível, o porquê e o como do seu serviço. Mais ainda, ele só se legitimou como criatura, de pé diante de Deus, à medida que seu gênio podia ser praticado pela comunidade. Portanto, não é apenas um homem músico, mas um músico dos homens. Sem vaidade, mas confiante e quase impensadamente, tão natural isso lhe parecia.
          Ele não sonha, como Beethoven, em se transmitir à humanidade futura, em se realizar para ela, muito menos em construí-la à sua maneira; não compensa os fracassos do presente por impulsos proféticos; não impõe seu drama como uma espécie de arquétipo do destino humano - não, ele é um homem a quem basta estar cercado por seu tempo e seu meio. (...) O surpreendente é que, através da sociedade em que vivia, (...) tenha apreendido nossos impulsos mais elementares. Na sua rítmica, há algo de negro africano e a força de enfeitiçamento das velhas magias. Basta, para mim, como prova disso, seu gosto pelo anapesto obcecante ou por aquele moto perpetuo que ele desenvolve com prazer e que acaba nos comunicando a sensação do turbilhonamento compassado dos mundos. Sob a peruca e as rendas da roupa, um homem ouve-se e se desnuda ingenuamente, de sorte que consegue alcançar as mais antigas expressões do homem. É isso que o torna tão presente para nós. Maravilhosa completitude que lhe permite, em nosso século, ao mesmo tempo, encontrar-se no jazz, exaltar a piedade dos religiosos, estimular os paladinos do intelectualismo, quando não justificar com as suas últimas obras, mesmo que involuntariamente, as pesquisas abstratas dos dodecafonistas. Ele põe todo o mundo de acordo. Teria ficado estupefato com isso, não podendo imaginar que acertaria tão em cheio.

Luc-André Marcel - "Bach", Martins Fontes, 1990 (Coleção Opus 86)